Imagem: Paramount Pictures |
Essa crítica mostra os motivos de esse que vós fala ter gostado do filme e faz uma interpretação da obra. Não é porque uma leitura interpretativa foi feita que ela é a certa, muito por conta de o filme ser reflexivo e dar margens a diversas opiniões. Portanto, assistam a obra e leiam esse texto sem medo, é uma projeção sem spoilers.
É interessante que o público quando prestigia qualquer tipo
de arte, sempre busca algo que comova, que mude, que incomode, mesmo que não
procure isso de maneira direta, mesmo que o objetivo principal de apreciar uma
obra seja apenas o entretenimento, ainda há a vontade de um algo a mais.
Sem dúvida alguma, o cinema é uma dessas artes que causa os
mais diversos tipos de sensações, com os mais variados objetivos. Um filme pode
ser usado como um meio de informação, como uma ferramenta politica, como uma
forma de fazer criticas sociais, como entretenimento, ou para incomodar o
espectador.
Esse ultimo tipo de cinema é algo que o diretor Darren
Aronofsky vem fazendo muito bem durante toda sua carreira. É possível classificar
alguns de seus grandes sucessos de público e critica como filmes que perturbam
o espectador. “Réquiem Para Um Sonho” é uma obra que apresenta, usando personagens
viciados em drogas, um estudo interessante sobre o vicio e sobre o sistema que
alimenta esse vicio. “Cisne Negro” aborda o aspecto psicológico que a relação
entre pais e filhos (no caso do filme, mãe e filha) pode acarretar na carreira
dos mais jovens. E o seu mais novo filme, “mãe!” (em minúsculo mesmo viu!?),
usa o aspecto religioso – que já tinha sido abordado em Noé – ao mesmo tempo
que faz uma releitura do velho testamento e explora um assustador panorama
atual.
Porque o terror, que os trailers do filme venderam tão bem,
é algo que assusta a sociedade em seu dia a dia. A obra conta a história de Mãe
(ou Ela, como preferir) interpretada por Jennifer Lawrence, que vive em uma
casa com Ele – representado por Javier Bardem – um poeta que se retira para um
local isolado junto a esposa, para que consiga escrever, até que um médico (Ed
Harris, o homem de preto da série Westworld) se hospeda no local, e isso
incomoda fortemente a mãe.
Os aspectos técnicos no filme, apesar de serem perfeitos,
não se sobressaem a obra, e isso é um dos vários pontos positivos, pois essa é a maneira de agradar a todos os públicos. A fotografia, de Matthew Libatique, é escura,
remetendo ao ambiente interno das igrejas, mesmo que o local onde se passa a
cena seja bem iluminado, sempre temos a impressão de estarmos em uma casa cheia
de vitrais, construída em uma arquitetura gótica.
A câmera está sempre próxima dos personagens, usando close
ups nos rostos do elenco. Com os movimentos mais diversos, a proximidade dos
atores faz a atmosfera de tensão ser criada gradualmente, principalmente em
cenas que várias pessoas se encontram dentro do mesmo local, sendo rodadas quase
sem cortes, em planos sequencia e com inúmeros travellings para a frente e para
o lado, fora as panorâmicas, utilizadas na maioria dos momentos em que Lawrence
anda pela casa.
O design de som é excelente, por dois motivos, o primeiro é
para contribuir na atmosfera de tensão, que o filme se preocupa em criar de
forma tão bem estruturada, e o segundo é a forma como o som aumenta de repente,
logo quando o personagem de Bardem se impõe. Quando ele dá uma ordem de forma
direta, o tom da voz dele fica mais alto devido ao som e logo essa ordem é
cumprida.
Os enquadramentos usados para expor Lawrence no filme se
mostram de uma grande elegância, porque ela é frequentemente mostrada entre o
apoio de portas e janelas, entre vigas e paredes, sempre com essas sustentações
a emoldurando, como se a personagem fosse uma santa, uma espécie de divindade
dentro daquele local.
E, por falar em personagens, não há nenhum desses na
projeção, todos ali são símbolos, metáforas para algo maior do que apenas um
nome, sobrenome e uma personalidade bem construída. O elenco consegue expor
isso com maestria, ao criar papeis que demonstram empatia ao mesmo tempo em que
demonstram distancia, frieza e egoísmo.
Pois, vejamos, Ele, vivido por Javier Bardem, em uma de suas
melhores performances, é o criador, Deus. O papel dele é justamente o de criar
coisas, pessoas, bens materiais e deixar a sociedade usufruir disso. A mãe
serve para reconstruir aquilo que foi prejudicado em algum momento, logo, ela
representa a dualidade de Deus, ela remonta tudo aquilo que Ele usa para criar
o mundo. Ed Harris é claramente a representação de Adão, e sua mulher,
representada por Michelle Pfeiffer, é Eva, seus filhos (Brian e Domnhall
Gleeson) são Caim e Abel. A casa é o jardim do Eden e o diamante, tão valioso
para Bardem, tão cobiçado por Harris e sua família e tão guardado por Lawrence,
representa o fruto do pecado e a ferramenta usada por Deus para a criação do
mundo. Fora que, o poema que Bardem escreve, é uma metáfora da bíblia.
Isso é justificado através de várias coisas. No caso de
Lawrence, ela se importa tanto com a casa, por fazer parte dela, por tê-la reconstruído,
como a própria personagem fala em determinado momento da projeção. Bardem se
importa apenas com as coisas que faz, deixa de fazer ou deseja fazer, ou seja,
a criação de algo. Harris e família estão ali porque o casal principal os
criou, e toda crise começa quando Harris visualiza o diamante, ele cobiça a
ferramenta de criação, ele deseja o pecado (o sexo) e logo após esses
sentimentos se manifestarem, sua família chega a casa.
Logo, tudo o que foi citado é uma releitura do velho
testamento. Porém, a obra consegue repassar esses aspectos para o contexto
atual, vejamos como. As cenas onde várias pessoas se reúnem dentro da casa, são
duas, acontecem em períodos diferentes da projeção e remetem a “O Anjo
Exterminador” de Luís Bunuel e a “O Bebe de Rosemary” de Roman Polanski. A
primeira se dá após uma morte, o velório acontece na casa de Lawrence, e um
grupo grande de indivíduos, desconhecidos para a mulher, estão ali devido ao
acontecimento. Nesse momento, vemos como as pessoas são interesseiras, pois
tentam tomar posse de tudo o que há na casa. Enquanto a mãe liga e se incomoda
fortemente com o materialismo gerado pelo livre arbítrio, Ele não se incomoda
com nada disso, seguindo o preceito de amar os outros e também por querer ser adorado
por aquele grupo.
A segunda cena ocorre em um momento mais próximo do fim do
filme, onde um grupo ainda maior de pessoas está em busca de Bardem por conta
do poema/bíblia que ele acabou de lançar. E é nessa sequencia, que “mãe!”
se supera, criando tensão através de mortes, egoísmo e materialismo, expondo
como a leitura errada da palavra e como a intolerância religiosa levam ao
discurso de ódio, que geraram as inúmeras guerras religiosas na idade média, e
que constroem um ambiente politico destruidor nos dias de hoje. Tudo isso – que
acompanhamos pelo ponto de vista de Lawrence, vale ressaltar – devido ao
exagero dado quando o livre arbítrio foi cedido ao homem.
E todos esses aspectos dessa segunda cena levam a repetição,
pois como diz o personagem de Bardem “Nada Basta”, até porque, se bastasse, se
houvesse um final, a criação que Ele tanto aprecia nunca mais iria acontecer.
E realmente, “mãe!” não basta, porque é um filme que pode
acarretar diversas interpretações, por ser expressivo, inteligente, perspicaz e
por expor o contexto atual da maneira mais fiel possível, usando a violência que
uma má interpretação pode gerar. Logo, essa projeção se torna uma das obras
mais reflexivas que o cinema já teve o prazer de ver e desde já, um dos
melhores filmes de um diretor muito bem sucedido. Um dos melhores lançamentos
cinematográficos de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário