8/26/2019 12:00:00 AM

Crítica: "Bacurau" - Carpenter e Kurosawa adaptados para o Brasil em constante transformação

Bacurau
Imagem: Vitrine Filmes / Cinemascopio / DIVULGAÇÃO
Transformação e miscigenação constantes são palavras que resumem o Brasil, um povo formado por matrizes variadas, a indígena, a africana e a europeia. Essas palavras também podem resumir “Bacurau”, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, vencedor do prêmio do júri em Cannes.

Os termos citados podem ser usados pois acompanhamos uma história tipicamente brasileiras, graças ao local onde se passa e as pessoas que fazem parte dela. O povoado que vive na cidade de Bacurau, após a morte de Dona Carmelita (Lia de Itamaracá) recebe Teresa (Barbara Colen) de volta para o velório e cortejo de sua vó. Logo após isso, eles percebem que coisas estranhas estão acontecendo, o povoado saiu do mapa, o sinal de celular e internet caiu e assim, o ataque a cidade começa.

Porém, esse ataque em específico começa, mas um ataque nunca parou, e o filme mostra isso muito bem. A saúde, comandada por Domingas (Sonia Braga), é precária pois chegam poucas coisas no pequeno posto da cidade, a escola, que tem Plínio (Wilson Rabelo), como professor, conta com poucos livros em boa qualidade, a água chega todos os dias através de apenas um caminhão pipa e a rotina da cidade é quase sempre a mesma.

Essas coisas que chegam na cidade, com exceção da água, chegam devido ao prefeito abusivo Tony Junior, que leva os mantimentos (no caso dos alimentos, já com prazo de validade estourado) para a cidade, de modo a conseguir um amor do povo que já lhe é impossível.

O que faz tudo isso funcionar tão bem é que tudo isso é real. Vivemos em um país onde o SUS é precarizado e faz muito com pouco, assim como as escolas e professores, sem esquecer dos pequenos produtores de alimentos da agricultura familiar. O que faz tudo isso ser mais assustador, é que Bacurau não teve seu roteiro escrito pelos seus diretores recentemente, levou 10 anos para ficar pronto. Logo, apesar de atual, não é algo que pode ser levado como uma crítica direta as atualidades.

É um filme sobre o futuro, não sobre o passado e a oscilação de gêneros ajuda o público a entender, aliado com determinadas referencias históricas. A obra oscila entre drama, comédia, musical, ficção, terror e ação.

Sem um protagonista especifico, que remonta a “Os sete samurais” de Kurosawa (reparem na variedade de movimentos de câmera durante o filme) vemos um filme tipicamente brasileiro, que fala sobre temas brasileiros, mas de uma forma que pode ser considerada estrangeira, o que, assim como a oscilação entre gêneros, ajuda o público a se familiarizar com o que está vendo, porque de certa forma, ele já viu aquilo em filmes americanos, a diferença é que se ver na tela, se entender como brasileiro, latino, é algo que “Bacurau” faz o espectador enxergar.

Graças a fotografia (de Pedro Sotero, colaborador frequente dos diretores), a sensação descrita acima se firma, assim como as lentes usadas, são as lentes utilizadas na maioria dos filmes americanos tão populares que assistimos por aí (imagino que sejam lentes Panavision), a diferença são as cores, puxadas para os tons áridos ou verdes. O que nos leva aos vilões do filme serem uma equipe de estadunidenses e um europeu (Michael, interpretado por Udo Kier).

Bacurau
Imagem: Vitrine Filmes / Cinemascopio / DIVULGAÇÃO
Esses vilões não são uma metáfora, mas talvez sejam uma simbologia que representa os países dominantes e esses países que sempre foram dominantes, os que colonizaram as Américas e a África. Pois, para eles, tudo aquilo é uma espécie de brincadeira, é algo natural, algo que já foi feito antes e que será feito depois, porque o mundo é assim e, claro, para eles, toda pessoa, mesmo branca, que nasceu no Brasil ou em qualquer outro país das Américas Central e do Sul, não são brancos, são latinos e uma das melhores cenas do filme trata dessa temática.

Já os habitantes de Bacurau, seriam uma simbologia do povo colonizado, que tenta lutar de uma forma no primeiro contato, no caso, através das palavras, das ideias, como mostra a bela cena em que o repentista expulsa os forasteiros com sua arte. Eles não querem pegar em armas – reparem que as armas da cidade estão no Museu histórico de Bacurau – mas, se necessário, farão isso sem pensar duas vezes.

Isso é algo que remonta a história mundial. Na projeção, as armas não ficam no térreo, ficam no subterrâneo, algo que se refere aos Guetos de Varsóvia (quando as pessoas cavaram tuneis que ligavam as áreas da cidade usando os sistemas de esgoto) e em Bacurau o povo cava uma determinada área para pegar as armas que não estão no museu. Lunga (Silvero Pereira, excelente) é uma figura necessária para a luta armada em questão, pois é ele quem assume o papel de liderança.

Não que precise, o povo sabe muito bem o que precisa fazer e é notável como todos fazem o que julgam necessário, mesmo que não gostem daquilo, igual na Guerra de Canudos. Acácio – ou Pacote – é um bandido que quer deixar de ser bandido, até mesmo questionando a crueldade do povo no momento de luta, Plínio, professor, não hesita em lutar e Teresa é uma espécie de síntese daquilo e do que a pessoa pode se tornar se obrigada a ser agressiva.

Talvez seja devido a essa luta compartilhada que a falta de protagonista não faça falta e na verdade, se constitua em uma qualidade, da mesma forma que nos filmes de John Carpenter (principalmente “Fuga de Nova York”, “The Thing” e em menor grau "Starman"), o que justifica a trilha ser tão variada, já que no terceiro ato – quando o filme muda de fato – a trilha aposta nas músicas instrumentais, em geral com base em sintetizadores, assim como em filmes do Carpenter e nos primeiros atos, inclusive no seu início, as músicas são brasileiras.

É essa mistura que faz da obra um trabalho que, em um primeiro contato, assusta mais do que conquista, mas não demora muito para que nos sintamos parte daquilo, para que nós vejamos... nós, o povo indígena, negro, nordestino, latino e brasileiro.

Isso é o que faz “Bacurau” ser um dos melhores filmes do ano, vemos a nossa miscigenação e a nossa transformação constante no povo que somos. Vemos, principalmente, através de gêneros variados, de onde viemos.

Mais do que um western com certos aspectos de Kurosawa e Carpenter, vemos aqui um perfeito exemplar do cinema nacional.

Veja o trailer, filme distribuído pela Vitrine Filmes:

2 comentários:

  1. Vou ver com certeza , amo cinema nacional

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  2. Voltei pra dizer que assisti e gostei muito .

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