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“A vida é curta”, diz o personagem o de Tom Cruise, Vincent,
em certo momento de “Colateral”, filme dirigido por Michael Mann e lançado em
2004. Pouco tempo após essa fala, que é direcionada a Max (Jamie Foxx), um
coiote aparece em uma rua vazia durante a madrugada em Los Angeles, olha os
dois homens adultos dentro do táxi e some.
A noite está sendo longa para Max, após ser sequestrado por
Vincent e forçado a acompanhá-lo em uma sequência de assassinatos que roda a
cidade, Max olha para o coiote pensando que sim, a vida é curta mesmo e que o
seu coiote, naquele momento, é Vincent, que ao mesmo tempo que o faz enxergar a
vida por um novo ponto de vista, também o limita, pelo óbvio motivo do
sequestro.
“Colateral” é um filme sobre sonhos e principalmente, sobre
sonhos não realizados, sobre como a vida é vivida com base nesses sonhos não
realizados e que não o fazem seguir, mas sim, o fazem ficar parado, mesmo que
esteja em constante movimento devido as circunstâncias, assim como Max, que
sabe que não vai abrir sua empresa de limusines, mas sabe que será um motorista
de táxi pelo resto da vida.
Talvez esse filme seja um dos que mais fala da relação entre
empregado e trabalho, dentro da filmografia do Mann, e como, dependendo do caso
(digo isso porque são exceções, mas existem trabalhos que não engolem o
funcionário), a rotina suga Max. Ele acorda, se troca, come algo, se prepara
para mais uma noite, se apoia em uma foto que representa um sonho impossível, limpa
o táxi e começa mais uma jornada por Los Angeles.
Cidade que também o engole, mas não da mesma forma que seu
sonho irrealizável e sua rotina, seu coiote diário, que todos nós temos. Los
Angeles para Max é apenas um meio para um fim, pura e simplesmente um local
onde ele anda todos os dias deixando pessoas em seus destinos. O que incomoda
Max é o fato de ser uma pessoa comum, de ser mais um, de ser mais uma pessoa em
Los Angeles sendo engolida e sugada pelo capitalismo.
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Vincent o deixa consciente disso e talvez esse ponto seja o
que move a relação dos dois, mais até que o sequestro e a inevitável
cumplicidade que Max é obrigado a ter. Vincent fala de trabalho o tempo todo,
“Você está atrapalhando o meu trabalho” e expõe pensamentos que deixam claro
como, apesar da aparente liberdade e sucesso que ele tem em seu ramo – o terno
alinhado, a pasta, a tecnologia que ele usa com naturalidade – ele ainda
precisa fazer o que lhe foi pedido para ganhar uma remuneração, ou seja, ele é
empregado de alguém, mesmo que esse alguém mude com frequência. A diferença é
que ele entende a relação do sistema com ele e entende que o coiote dele é a
necessidade de trabalhar, o que o força a fazer o que faz, mesmo que ele acabe
por gostar daquilo.
E não se enganem, Vincent gosta, ele sente prazer em ser
assassino de aluguel, ele sente tesão em matar, por mais focado que seja em
reduzir mortes desnecessárias – reparem quando ele mata os dois ladrões que
roubam Max no táxi – ele ainda assim gosta do que faz, mesmo que entenda o que
o força a fazer aquilo, que compreenda o que é de fato o coiote.
Provavelmente os sonhos de Vincent, assim como os de Max, são impossíveis e provavelmente, em algum momento da vida dele, ele percebeu que não os realizaria e ficou bravo, bastante bravo, de forma que encontra em seu trabalho atual uma forma de alívio de stress, mesmo que seja uma maneira totalmente criminosa e errada de fazer isso.
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Se Max escolhe a honestidade, que gera um inevitável tédio
para ele, já que ele sempre segue a mesma rotina, as mesmas pessoas, as mesmas
discussões dentro de um táxi apertado em uma noite quente de Los Angeles,
Vincent escolhe a desonestidade, que gera para ele, provavelmente, uma sensação
de adrenalina, o que o leva a seguir uma carreira criminosa, mas ainda assim,
ele se relaciona com as mesmas pessoas (quem o contrata), tem as mesmas
discussões (sobre trabalho e sobre o valor que lhe será pago) e acaba dentro de
um táxi apertado em uma noite quente de Los Angeles.
Então, voltamos a cena do coiote, que, acredito que já tenha
ficado claro se você chegou até aqui, serve como uma espécie de resumo do
filme, assim como a cena da galinha, que abre “Cidade de Deus”, serve de resumo
para a trajetória de Buscapé. O coiote representa um sistema, que sempre esteve
e sempre estará dentro da nossa sociedade, que sempre nos olhará e saberá o que
estamos fazendo e sumirá em uma rua qualquer dentro da cidade onde moramos.
Os sonhos impossíveis fazem parte dele e mantém esse sistema
funcionando e o coiote andando e sumindo em um ciclo. Apesar de ser uma visão
maniqueísta, dentro do ambiente de “Colateral” ou você é Max ou você é o
Vincent, ou você se rende ao sistema e entende que não, você não vai conseguir,
ou você abriga o sistema dentro de si e faz a escolha agressiva de lutar de
alguma forma – mesmo que desonesta e criminosa – sabendo que não conseguirá
realizar o seu objetivo, seja por não ter um, por gostar do sistema e lutar
para mantê-lo ou, pura e simplesmente, por ter prazer na prática cruel que o
faz estar ali.
Mas, no fim das contas, pouco importa a escolha que você faz quando você não tem perspectiva, afinal, tendo ou não esse ponto a seguir, devido ao sistema, ao coiote, a possibilidade de você acabar em um metrô, ensanguentado, pensando quando vão te achar ou acabar saindo desse metrô, suado, cansado, pronto para mais um dia, pleno da sua situação atual, sabendo que te consideram um ninguém, um nada, preparado para limpar seu táxi, entrar nele e explorar através de seu trabalho mais uma noite quente na cidade de Los Angeles, é bem alta e diria, provável.
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