5/17/2021 08:49:00 AM

A primeira vez de todos os dias - Yi Yi (2000)


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Imagem: DIVULGAÇÃO

“Todo dia é uma primeira vez”. Sim, todo dia é uma primeira vez e toda vida é uma sequência de primeiras vezes, onde, nas mais diversas idades pelas quais passamos, vamos descobrindo novas coisas, nem sempre boas, mas nem sempre ruins e com o passar do tempo, na medida do possível aprendemos a lidar com essas coisas e fazemos escolhas.

No momento, esse crítico não passa por nenhuma primeira vez, até porque, a tristeza em mim, no nível atual, não é algo inédito na minha vida, porém, querendo ou não, “todo dia é uma primeira vez” e pela primeira vez eu vi um filme sobre isso, esse ciclo indescritível de começos, “Yi Yi”, de Edward Yang.

A frase que inicia o texto é dita por um dos personagens do filme. Este, um coadjuvante das histórias que o filme conta, diz o que talvez seja a ideia da obra, que tudo, todo dia, é um recomeço, mas que claro, é difícil encarar dessa forma, porque estamos tão imersos nas nossas vidas e trajetórias, que acabamos não pensando nas descobertas que fazemos todos os dias.

Mais fácil do que pensar nessas descobertas diárias é vê-las, mesmo que por outro ponto de vista. O menino que está tendo suas primeiras vezes em tudo, a menina, irmã dele, que sente culpa por algo que ela não fez, ao mesmo tempo em que vive um primeiro amor conturbado e, claro, o pai deles, que redescobre a vida a partir de uma primeira vez que há muito tempo não aparecia.

Vendo isso é impossível que nós, espectadores, não pensemos nas primeiras vezes que tivemos até hoje e não apenas nas retratadas pelo filme. Até porque, a obra expõe uma rotina diária muito comum à de todos, de maneira que nos identifiquemos e nos vejamos nela, afinal, todos nós acordamos, todos nós comemos logo cedo, alguns trabalham, outros estudam e todos lidam com problemas diários que surgem a partir dessas práticas.

O pai falido, a filha em constante dúvida, o menino em estado de descoberta crescente, o normal para uma criança, todos eles são capazes de se identificar com o espectador e vice-versa, de forma que as primeiras vezes que vemos no filme nos fazem lembrar das nossas primeiras vezes em situações parecidas as que eles vivem, de maneira que ao nos vermos ali, sentimos, dadas as devidas proporções, o que aqueles personagens sentem.

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Imagem: DIVULGAÇÃO

Porque as situações podem até não ser iguais, mas o sentimento é. Todos sentimos dúvida e indecisão durante a maior parte de nossos dias, todos sentimos medo e todos nós descobrimos que é possível sair disso, mas que as vezes não vai dar certo, pois a vida engole e quando a vida engole, um saco de lixo pode virar um gatilho para uma culpa absurda e uma foto desfocada pode trazer uma sensação de alívio que não esperávamos, assim como a resposta de uma pergunta que martelava nas nossas cabeças.

Imagino que quem traduziu o título desse filme para o português brasileiro (“As coisas simples da vida”) tenha visto o filme e pensado no mesmo que eu: é um filme sobre a vida um dia de cada vez e sobre as primeiras vezes que acontecem nesses dias e todos os dias.

Pensando nisso, o que você fez hoje pela primeira vez? Pode ser algo simples e até mesmo bobo para outra pessoa, mas que você fez pela primeira vez e, claro, não precisa você ter sentido nada demais, apenas ter se dado conta que esse algo que você fez é inédito na sua vida ou ao menos é inédito atualmente.

Eu me sentei numa cadeira e fiquei com a postura adequada, foi exatamente isso que fiz pela primeira vez no dia em que estou escrevendo esse texto. Me manter com a postura adequada numa cadeira própria fez diferença, mas nada demais, assim como a menina, que esqueceu de jogar o lixo fora no filme, nada demais, mas que nela teve um efeito muito sério, um gatilho para um sentimento que nos acompanha todos os dias, a culpa.

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Dá para dizer que em uma das cenas mais bonitas do filme ela, Ting-Ting, consegue se livrar dessa culpa, pois assim como a maioria das coisas na vida, a culpa passa, some e ficamos surpresos com a nossa capacidade de esquecer certas coisas, mas nem tudo pode ser esquecido, como no caso do pai dela, que nunca esqueceu o único amor que teve e provavelmente nunca esquecerá.

Em compensação, se para esses dois (e para mim) a sensação de culpa e de não esquecimento é frequente e diria, ininterrupta, para o menino, Yang-Yang, a vida ainda é uma sequência de descobertas, cores, pessoas, brincadeiras, algo para fazer e talentos para desbravar. Para ele, nada ainda gera medo e por mais que ele saiba que vai sentir isso, ele ainda não pensa nisso e muito menos tenta antecipar o medo para poder evitá-lo.

Infelizmente, não é possível antecipar nenhum sentimento e muito menos antecipar a vida. Mas é importante lembrarmos das primeiras vezes, Ting-Ting se livra da culpa pela primeira vez e volta a dormir, o pai passa a usar o amor que ainda sente em sua vida pessoal, Yang-Yang lida com o medo e com a perda de uma forma que um adulto nunca conseguiria imaginar e todos nós tentaremos repetir as nossas primeiras vezes em situações completamente novas, mesmo com a plena consciência de que isso é impossível.

Eu, agora, passarei, provavelmente, a me sentar com a postura adequada com mais frequência, tentando repetir a primeira vez de hoje em uma situação nova, sabendo da impossibilidade, mas consciente da tentativa e as vezes, só... as vezes, isso é o suficiente.

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