Imagem: DIVULGAÇÃO |
Poucos diretores falam sobre o desconhecido, o medo do
desconhecido e a descoberta desse desconhecido, tão bem quanto Abel Ferrara. Toda
a sua filmografia aborda isso de alguma forma, mesmo os filmes que não parecem
levar esse assunto em consideração, como os documentários dele, ainda trazem
algo sobre isso.
“Vamos ganhar essa guerra, para que os mortos não tenham
sido em vão”. Essa frase poderia ser de Christopher Walken em “O rei de Nova
Iorque”, quando ele decide ajudar a cidade através do dinheiro que ganhou na
corrupção, poderia ser de Harvey Keitel em “Bad Lieutenant”, quando o policial
olha para Jesus na Igreja e se arrepende de todos os seus pecados, poderia ser
de Willem Dafoe em “New Rose Hotel”, quando ele está no quarto, sozinho, pensando
que todo aquele golpe imaginado com Asia Argento foi a toa.
Mas, é de um dos personagens interpretados por Ethan Hawke em “Zeros and Ones”, no caso, o irmão do protagonista, Justin, um revolucionário de uma luta que começou há tempos. JJ, seu irmão, é um militar que está em uma Roma em cerco, enfrentando um inimigo que nenhum dos lados da guerra sabem quem é, o mundo está um caos e todos usam máscara devido a COVID-19. A missão pessoal de JJ é descobrir quem é o inimigo e onde seu irmão está.
O público se junta a JJ nessa busca e se identifica com ele.
Os dias são sempre noites, não apenas de forma literal, mas também dentro do
protagonista. JJ está em constante procura de algo que não sabe o que é, assim
como os inocentes que ele encontra no meio de sua trajetória aparentemente
infinita, a esposa do irmão, o morador de rua, as prostitutas e por aí vai.
Como ter fé em meio a esse caos? Vemos constantes explosões
na cidade, enquanto pessoas ricas jantam e tomam vodca cara, enquanto outras
pessoas se preocupam em colocar a máscara corretamente e lavar as mãos com frequência
e não sabemos, assim como JJ, qual é a saída daquilo. O protagonista tenta
acreditar que tudo aquilo vai passar, mesmo sem nem saber contra o que está
lutando.
Esse ponto é importante e serve para os momentos cada vez mais
atuais, independente do país. Vivemos em uma época de inconstância, onde nossa
ansiedade está lá em cima devido a nossa necessidade de controle, mesmo que
tenhamos consciência de que não é possível ter controle sobre algo incontrolável.
Tentamos nos distrair com músicas, filmes, realitys shows, literatura, fazemos terapia e infelizmente, não é possível se livrar do caos, seja porque o ser
humano é uma junção de caos, ou porque o mundo está um caos. Para piorar, tudo
é registrado e registrado por nós mesmos, de maneira consciente, através de
nossos celulares, câmeras, internet e afins, em uma forma de termos controle
sobre algo, mesmo que seja mínimo, ao mesmo tempo em que isso é contraditório,
pois ao filmarmos e compartilharmos, damos o controle ao outro.
Por isso, creio eu, que todas as ações de JJ durante a obra são filmadas por ele mesmo ou por terceiros, em uma tentativa de controle sobre
o desconhecido que está presente em todos os ambientes, tanto da obra, quanto da
vida. Vemos a mesma imagem, a mesma cena, de maneiras diferentes, que JJ através de uma câmera,
seja a câmera da roupa dele, seja a que ele carrega em um tripé, ou as câmeras
das ruas de Roma, filma para seu público (nós) ou para ele mesmo.
Não é através delas que vemos uma mudança em JJ, porque não
vemos, assim como não vemos a mudança em nós, a não ser quando esta já aconteceu
e acontecem todos os dias. Tem dias que acordamos mais otimistas e dias
que acordamos extremamente pessimistas com tudo, JJ é uma dessas pessoas e
percebemos isso na atuação de Ethan Hawke.
Durante aquelas noites sem fim, tem momentos em que ele se
encontra totalmente otimista em relação a descobrir qual é o inimigo
desconhecido e a salvar o seu irmão (que ele, assim como nós, sabe que está
preso.) Tem momentos que é justamente o oposto, que ele tem certeza de que nada
vai dar certo, que o inimigo desconhecido nunca vai ser descoberto ou derrotado,
que ele vai ter que usar uma máscara pelo resto da vida e que a noite será
eterna e que nunca mais a luz do sol será vista, que o mais próximo da
claridade será a luz de uma explosão.
Mas, sabemos que isso não é verdade e Ferrara também sabe.
Se morrermos, iremos ir para o céu, como ele deixa claro na linda cena da igreja e em
alguns dos diálogos com o morador de rua. Sempre teremos alguém com quem
contar, assim como JJ tem o amigo que vemos apenas por videochamada, além,
claro, da cunhada e da sobrinha, assim como a jovem russa (interpretada pela companheira de Ferrara) tem a amiga e assim por diante.
E os dias, sempre amanhecem. Independente dos zeros e uns que vemos consolidados na internet e nas câmeras, o sol sempre volta, o otimismo também e mesmo que ele passe, a sensação é a que fica, da mesma forma que o que fica sobre esse filme é que o desconhecido assusta a todos, mas, se conseguirmos lutar contra ele um passo de cada vez, teremos a mesma sensação de uma criança correndo no parque: a da liberdade, mesmo que seja passageira.
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