10/12/2023 10:00:00 AM

Crítica: Assassinos da lua das flores

Assassinos da lua das flores
Imagem: DIVULGAÇÃO / Paramount

Ao ler o livro “Assassinos da lua das flores”, de David Grann, pensei como seria difícil adaptá-lo para o cinema, devido ao peso e as camadas de uma história que teve como principal consequência para os Estados Unidos a criação do FBI. Claro, eu li por conta do livro ser o material base para o filme de Martin Scorsese.

O filme conta a história dos índios osages, um povo que devido as suas terras serem exploradas em busca de petróleo, se torna alvo de William Hale (Robert de Niro), que usa e manipula Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) para que esse e vários outros homens brancos assassinem indígenas para poderem ficar com o dinheiro que recebem mensalmente das empresas petrolíferas presentes na cidade.

Por mais que acima eu tenha falado de Burkhart e Hale, Scorsese escolhe contar essa história pelo ponto de vista de Mollie Burkhart (Lily Gladstone), que é o alvo principal de Hale. A família de Mollie é grande (ela é uma de quatro irmãs e a mãe) e por isso elas se tornam alvos, por terem muito dinheiro.

Essa escolha faz que Scorsese não conte uma história apenas de roubo, racismo e crime, mas também de tristeza, melancolia e de certa forma, de resposta ao cinema clássico dos Estados Unidos, principalmente filmes dos anos 10 e 20, além dos westerns que viriam depois.

“Assassinos da lua das flores” talvez seja o filme mais duro em relação a movimentos de câmera que Scorsese já fez e com certeza é o mais naturalista e anticlimático. Isso porque nas 3h27 em um filme com muitos assassinatos, vemos pouquíssimos deles, porque Scorsese e Thelma Schoonmaker (amiga e montadora dos filmes do diretor), escolhem cortar essas cenas.

Essa escolha é em prol da reação de Mollie e das vítimas que são obrigadas a conviver com o medo de serem os próximos. Ao escolher não mostrar a maioria dos assassinatos e quando mostra, escolher fazer esses momentos serem breves, o filme mostra o seu lado. Scorsese não quer com “Assassinos da lua das flores” criar uma aura de glorificação a violência (o que aconteceu inconscientemente com, por exemplo, “Taxi Driver”), mas sim, mostrar uma história que precisa ser contada por que esse genocídio é um dos vários que deu origem aos Estados Unidos.

Talvez, por isso, o filme se aprofunde na melancolia. Por ser anticlimático e quase naturalista – a trilha sonora musical é quase inexistente, a maioria dos sons são do ambiente, a fotografia é quase com a luz natural dos lugares – vemos uma obra não fetichista, uma história real onde vemos a tristeza das pessoas pelo que acontece e vemos as suas tristezas e frustrações pessoais.

Mollie é uma mulher rica, mas triste. A relação com a sua família é boa, mas complicada. A única das filhas que cuida da mãe, mesmo sendo maltratada e preterida em prol da irmã, Anna, que é a filha que menos cuida da mãe. Solitária, Mollie encontra nas amigas e na rotina, parte da esperança necessária para conseguir aguentar o dia.

Mas a outra parte da esperança de Mollie é, infelizmente, Ernest. No marido ela encontra amor, uma possibilidade de vida e longevidade. Porém, da mesma forma que Scorsese e Schoonmaker cortam a maioria dos assassinatos, eles escolhem aqui mostrar de maneira diferente as coisas boas da vida da protagonista.

Eles fazem o uso de imagens em uma proporção igual a de filmes dos anos 10, 20, do cinema clássico, transformando-as em imagens de arquivo, em preto e branco. Considero isso uma resposta aos filmes daquela época, que se passavam nessa proporção e sem cor, porque os avanços ainda não tinham acontecido.

Porém, esses filmes, dirigidos por diretores ainda lembrados hoje e alguns ainda adorados atualmente, eram, muitas vezes, racistas. “O Nascimento de uma nação”, por exemplo, de D.W Griffith, é um filme extremamente racista e até hoje estudado para o bem e para o mal. Os primeiros filmes de John Ford, ainda no cinema mudo, também entram nesses problemas.

Neles, a pessoa indígena, a pessoa preta, a mulher, sempre morriam, sofriam ou eram punidos de alguma forma. Alguns filmes de John Ford, já na fase do cinema falado, tem muito disso, não todos, mas muitos sim e por mais que nessa época fosse comum pensar dessa forma terrível, é uma forma errada de se pensar.

Ao escolher mostrar as coisas boas da vida de Mollie e de outros habitantes do condado Osage nessa proporção e em preto e branco, Scorsese e Schoonmaker, talvez de forma inconsciente, mostram que naquela época, quando os filmes apenas eram feitos assim, era possível mostrar minorias qualitativas (definidas assim pelo capitalismo) sem mostrar eles sofrendo e morrendo, ou seja, fazer o mínimo.

Da mesma forma que mostrar certas coisas em “Assassinos da lua das flores” usando os quadros escritos, como o cinema mudo fazia, também serve para tal, já que as legendas explicam como os Osages ficaram ricos.

O que nos leva a força da atuação de Lily Gladstone, pois ao conhecermos Mollie, sabemos que ela está sendo manipulada por Ernest, não porque ela não é capaz de evitar isso e sim porque todo aquele sistema de coisas ruins foi arquitetado de maneira a fazer ela e os outros indígenas sofrerem. Ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com Anna Paquin em “O Irlandês”, que é um filme que amo, mas que o fato da atriz não ter falas, foi uma decisão estilística, a meu ver, questionável.

Mas em “Assassinos da lua das flores”, o público não esquece da pessoa que Mollie é, da boa amiga, a boa filha, a boa irmã e claro, a boa esposa, pois Ernest é o ruim aqui, não ela. Ela é uma vítima, mas nunca vitimizada por Scorsese, que faz com que Gladstone apareça imponente, posturada, em muitos momentos altiva, uma presença respeitada por todos e uma ausência sentida quando acontece o que acontece no filme.

E se acontece o que acontece no filme, da forma como foi estruturado como cinema, é porque uma das principais vertentes do áudio, antes dele ser audiovisual, era o rádio. Em 1938, Orson Welles apresentava “Guerra dos Mundos” no rádio e as pessoas, ao ouvirem aquilo, muitas do meio para frente, sem saber que era apenas uma história de ficção, acreditaram que a terra estava sendo invadida por alienígenas.

Elas acreditaram porque criaram todos os efeitos sonoros para tal e aliada a narração de Welles, que tinha uma voz grave, todo ficou mais crível, então de certa forma, pode-se dizer que isso foi importante para o cinema. Scorsese traz isso para “Assassinos da lua das flores” em uma das cenas mais bonitas da sua carreira, onde vemos como é importante lembrarmos que certas histórias precisam e merecem ser contadas.

A cortina fecha, o filme acaba e estamos com ele para sempre na memória, estamos com Mollie Burkhart para sempre em nós e com aquela melancolia, tristeza e esperança de que algo mudou. “Assassinos da lua das flores” nos lembra da importância da história, tanto da falada, quanto escrita, quanto contada oralmente de pessoa para pessoa, mas nunca transformada em arte e são elas que fazem de nós pessoas completas e importantes para quem amamos. 

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