Imagem: Embrafilme / Divulgação |
O cinema usa como construção de histórias a cultura de
diversos lugares, assim os aspectos históricos das pessoas, países, locais,
podem ser, dessa maneira, conhecidos, e aumentar o sentimento de empatia e o princípio
de alteridade no mundo todo.
Nosso país também se encaixa nesse aspecto, nós temos
o privilégio de sermos formados majoritariamente por duas matrizes
populacionais ricas culturalmente, historicamente e politicamente, a matriz
negra e a indígena, subjugadas devido a colonização e claro, não podemos nos
esquecer da matriz originária do continente europeu, principalmente de
Portugal, país colonizador.
Todas essas matrizes, ou ao menos a maioria delas,
está presente no único filme 100% brasileiro a ganhar a Palma de Ouro de Cannes
em 1962 (Não é possível considerar “Orfeu Negro” apenas brasileiro, também há o
lado francês e a direção é de um.). “O Pagador de Promessas” dirigido por
Anselmo Duarte, é inteligente ao explorar a sociologia presente na
religiosidade, ao explorar simbolismos dentro de uma história ainda atual.
Zé do Burro (representado por Leonardo Villar), é o
protagonista do filme e cumpre uma promessa: carregar uma cruz até a igreja de
Santa Barbara, pois após pedir a santa a salvação de seu burro, prometeu a
construção de uma cruz e o carregamento desta nos ombros. Junto com ele, está
sua mulher Rosa, interpretada por Glória Menezes. Na cidade, Zé enfrenta todos
ali em busca do cumprimento de seu: o padre Olavo (Dionísio Azevedo) que não o
deixa entrar na igreja, devido a promessa ter sido realizada em um terreiro, Bonitão
(Geraldo del Rey) um cafetão desejoso de sua mulher de maneira um pouco mais
ousada e com os aproveitadores de sua falta de instrução para tentar vender
seus produtos.
Rica, tecnicamente quanto sociologicamente, a projeção
e a fotografia do filme evocam o ambiente interno das igrejas católicas, os
ângulos de câmera evocam sempre a onipresença de Deus, os enquadramentos sempre
próximos aos personagens fazem o público se identificar com ao menos um
personagem presente na história. Sociologicamente, há a união de religiões
dentro de um mesmo espaço: a igreja de Santa Barbara.
Começando pelos ângulos de câmera, há muitas tomadas
que foram realizadas em plongée (de cima para baixo), propondo a superioridade
de Deus, sua presença instantânea, a noção campo – contra campo está aliada a
isso, por conta de muitos diálogos terem sido rodados nessas tomadas de cima
para baixo, realizando cortes para mostrar os personagens sozinhos no quadro,
como se ao menos naquele momento, o enquadrado estivesse livre para falar o
objetivado.
Claro, os ambientes internos também são retratados
dessa forma, então o espectador sempre irá enxergar o bar, o hotel, a igreja e
a escada (local onde se passa boa parte da história), de cima para baixo, como
aqueles grandes templos da idade média, futuramente retratados em tantos outros
filmes, como “Irmão Sol, Irmã Lua” (Dirigido por Franco Zeffirelli, 1972),
“Habemus Papam”(Com direção de Nanni Moretti e lançado no ano de 2012) e nas
séries televisivas “The Tudors” (2007) e “The Borgias”(2011).
Além de se encaixar nesse aspecto técnico da obra, a
escada inicia o simbolismo presente no filme. Se a igreja é o céu, inacessível
para pessoas vivas e principalmente para Zé do Burro, a cidade é o inferno,
onde vemos todos os pecados presentes, a luxuria e a ganancia de Bonitão, a
ambição de quase todos os comerciantes e o oportunismo do jornalista. A escada
é o purgatório, é o local onde todas as pessoas se reúnem para duas coisas, tentar
o acesso ao céu (Igreja de Santa Barbara) ou cair de vez no inferno (a cidade e
todos os seus pecados e tentações).
A famosa escada do filme. Imagem: Embrafilme / Divulgação |
Zé do Burro é um personagem interessante, complexo e
multifacetado, o homem apenas deseja cumprir sua promessa, ele não tem fé em
uma das múltiplas ideologias religiosas apresentadas no filme, ele tem fé em
Deus e apenas nele, e leva a pensarmos em um dos aspectos usados como
justificativa para o padre não deixar o homem entrar na igreja, o padre Olavo
acredita na ideologia do catolicismo e não apenas em Deus.
O escrito no parágrafo acima fica claro devido aos
travellings (movimentos de câmera para frente, lado, cima ou baixo) utilizados
no filme. O usado aqui, na maior parte das vezes é o travelling para trás, é
possível graças a isso perceber duas coisas, o afastamento mais frequente das
pessoas em relação a fé e a esperança gradualmente menor de Zé do Burro de
entrar na igreja e cumprir sua promessa.
Personagem Zé do Burro. Imagem: Embrafilme / Divulgação |
A solidão e tristeza do personagem ficam expostas em uma fala que poderia resumir o filme (se fosse necessário fazer esse resumo) que é: “Eu tenho que entender todo mundo, mas ninguém me entende”. Nenhum dos personagens ali entende a importância da promessa para Zé do Burro, a mulher dele quer voltar a dormir em uma cama, os comerciantes se aproveitam para divulgar seu comércio de forma insana, praticamente colocando o que vendem na cara das pessoas, o jornalista inventa uma história que não existe apenas para cumprir o prazo de entrega estipulado pelo seu editor e o cafetão apenas se importa em conquistar a mulher de Zé, fazendo-a se esquecer dele o mais rápido possível.
Essa frase resume a sociedade atual, todos nós
entendemos apenas a nós mesmos e não o outro, há uma falta de empatia crescente,
o nosso problema é maior do o que o do próximo. E a única solução para isso é
que escutemos o que o nosso companheiro de sociedade tem a dizer, como disse
Harper Lee em “O Sol é Para Todos”, “Você apenas consegue entender uma pessoa
de verdade quando vê as coisas pelo ponto de vista dela”.
Talvez, se ao menos uma pessoa tivesse feito o que Lee
disse com Zé do Burro, ele tivesse conseguido entrar na igreja de maneira menos
trágica do que a ocorrida. Talvez, se todos seguíssemos o que Harper Lee propõe,
o mundo seria ao menos um pouco melhor. Mas, como disse o músico Criolo, “As
pessoas não são más, elas são estão perdidas, ainda há tempo”.
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