3/25/2019 12:00:00 AM

Crítica: Nós

Nós
Imagem: UNIVERSAL PICTURES / Divulgação
Logo no inicio de “Nós”, novo filme de Jordan Peele, diretor e roteirista de “Corra”, vemos um homem com um cartaz escrito “Jeremias 11:11”, o trecho da bíblia diz “Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei.”

Esse versículo pode servir como resumo da nova obra de Peele e assim como todos os aspectos do roteiro, não é apenas um ponto ali que não será abordado. Em algum momento do filme, ele vai retornar, mesmo que o público não se dê conta disso, por estar imerso na história.

O mal, no caso, seriam as cópias (ou sombras, como o próprio filme chama). A história acompanha Adelaide (Lupita Nyong’O), mãe de Zora e Jason, casada com Gabe (Winston Duke). A familia vai passar férias na praia, na casa que eles têm em Santa Monica, o local já foi visitado por Adelaide quando criança, porém, após passarem o dia no local, durante a noite a casa deles é invadida, por eles mesmos, as tais sombras.

Peele, novamente roteirista do filme em que também dirige, usa essa história para se aproveitar de várias questões, criando simbolismos pontuais e deixando certas pistas durante a obra, para que o público as perceba e descubra o que é que vai acontecer na trama.

Nesse caso, é necessário que o roteiro seja perfeito, justamente o que ele é, começando com a frase da bíblia citada acima, esta sendo a primeira pista, mesmo que abstrata, do que vai acontecer, Peele vai avançando na história com base nessas pedras que deixa pelo caminho, quando a família vai para praia, a câmera posicionada em cima dos quatro membros destaca bem os personagens e suas sombras, ou seja, é ali que vemos os vilões do filme pela primeira vez.

O que nos leva aos atos espelhados que cada sombra faz em relação ao seu “portador”, já que os originais sabem o que as sombras estão pensando, justamente por se tratarem deles mesmos, logo, é como se fosse uma dança na frente do espelho, na qual nós somos o nosso próprio mal.

Peele usa os travellings para frente e para o lado de forma que vejamos, quase o tempo todo, como os personagens originais e as sombras ficam se buscando um dentro do outro, e não se encontrando (“e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”), o que explica, possivelmente, que os únicos sobreviventes daquilo serão eles e que a única saída são as pessoas conseguirem lidar com elas mesmas.

Pois, as pessoas precisam abandonar quem eram para se tornar quem são, e provavelmente, ainda assim não seremos quem somos, ou seja, a partir de uma metáfora simples, Peele constrói uma reflexão sobre como ser quem é, em meio a uma sociedade que mata quem a gente é todos os dias.

Nós
Imagem: UNIVERSAL PICTURES / Divulgação
Com isso em mente, o momento em que toca “Fuck the police” (do grupo de rap NWA) é notável, pois expõe várias coisas usando uma cena só: estamos sozinhos e a vida obriga a gente a viver numa espécie de “cada um por si”, não adianta chamar ninguém, pois ninguém vai vir, aqui se encaixa novamente o trecho “e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei” e claro, toda a questão da policia em relação ao tratamento com os negros nos Estados Unidos (algo bem em voga na mídia do país).

Mas apesar das metáforas, “Nós” é acima de tudo um filme de terror e apenas de terror, que não tem medo de abraçar as coisas clássicas do gênero para manter o ritmo em sua montagem, como a trilha sonora que muda e aumenta um pouco o volume quando algo chocante está próximo de acontecer, como a presença de animais, no caso coelhos (representando a procriação, tanto das pessoas, quanto das sombras) e de um certo sarcasmo bem encaixado.

Por ter tudo isso, é notável como Peele consegue dirigir e escrever um filme original, que tem metáforas e não tem medo de abraçar o gênero no qual foi instituído, ao mesmo tempo em que ele tira o máximo que pode de seu elenco, Lupita Nyong’O faz o difícil parecer fácil, ao criar Adelaide como uma personagem complexa e independente, Winston Duke faz de Gabe um homem levemente engraçado, mas nada que comprometa ou pareça bobo aos olhos do público, Shahadi Wright Joseph (Zora) e Evan Alex (Jason), fazem as crianças não serem apenas meras coadjuvantes, com trabalhos competentes e necessários ao filme e Elizabeth Moss, apesar de interpretar uma personagem estereotipada ao máximo, cumpre bem aquilo que o roteiro propõe.

Com breves referencias a filmes importantes no terror, como Violência Gratuita (de Michael Haneke) e O Iluminado (Stanley Kubrick), Peele cria uma obra original que ficará na cabeça do público por muito tempo, não dando um ponto sem nó – reparem como a cena da propaganda no início, bate com um comportamento importante no final – “Nós” é um filme que fala sobre como é difícil viver e lidar com si próprio e que na maioria das vezes não conseguiremos ser quem realmente somos.

E falar sobre tal assunto, de forma tão completa, em um filme de terror instigante, é o que faz Jordan Peele ser o primeiro Jordan Peele.

Veja o trailer aqui, filme distribuído pela Universal Pictures Brasil:

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