11/04/2019 12:00:00 AM

Crítica: O Farol

O Farol
Imagem: Divulgação
O Gabinete do Dr. Caligari”, “Nosferatu”, “O Encouraçado Potemkin”, “A Mãe”. Esses quatro filmes são de dois movimentos cinematográficos diferentes, os dois primeiros são do expressionismo alemão, os últimos são do cinema russo dos anos 20.

O que esses quatro filmes têm em comum, fora serem importantes para o cinema? Todos são homenageados e referenciados em “O Farol”, novo filme de Robert Eggers (diretor de “A Bruxa”). Dirigido e co-escrito pelo diretor (junto com seu irmão, Max Eggers), a obra conta a história de Ephraim Winslow (Robert Pattinson), contratado por Thomas Wake (Willem Dafoe), para trabalhar em uma ilha cuidando de um farol. Porém, o único que pode entrar no farol e ficar perto de sua luz é Wake, o que deixa Winslow curioso e determinado a descobrir o que tem lá dentro.

A obra é acima de tudo, antes de ser uma homenagem ao cinema clássico, um filme sobre solidão e como essa pode deixar as pessoas loucas, de forma a fazerem coisas que nunca imaginaram fazer. A proporção de tela comum, em 1:19:1, expõe isso muito bem, principalmente no que diz respeito a claustrofobia e a prisão que a ilha vai se tornando para Winslow conforme passa o tempo.

Na mesma forma que essa proporção nas cenas internas lembra cenas de “Nosferatu”, devido a criação da tensão do filme através do som (o que falarei mais abaixo), já que o tempo todo escutamos barulhos: os das gaivotas que vivem na ilha, o do farol, ou o das atividades que os dois personagens fazem no dia a dia.

Inclusive as atividades mais grotescas, como peidos, arrotos (esses de Wake) até as tarefas realizadas por Winslow. A proporção ajuda a mostrar como ambos estão presos a essa rotina, seja a grotesca e realizada por todos nós ou os deveres rotineiros e que ambos os personagens tentam quebrar com o passar do tempo.

Essa quebra também representa um rompimento na personalidade de ambos, já que inicialmente, pensamos que Wake é louco, sendo que, com o passar do tempo, vemos que ele é um homem que remete aos piratas clássicos de desenhos animados e que tem um sonho e defende esse sonho de todas as maneiras possíveis.

Da mesma forma que o Capitão Ahab, personagem principal do livro “Moby Dick” (de Herman Melville), mas a baleia de Thomas Wake é algo que ele não quer matar e sim algo que ele deseja ter unicamente para si, que é a luz do farol e aquilo que ela representa, o que potencializa o lado cartunesco do personagem, que poderia facilmente ser um desenho animado.

Inclusive pelo jeito de agir e principalmente falar, isso se deve a atuação de Willem Dafoe, cuja fala errada em certos momentos de forma proposital, remete a trechos de livros que os personagens principais são marinheiros. Reparem como determinadas falas dele são longas não devido ao conteúdo da fala e sim pelas palavras que ele diz, seja pela dificuldade delas ou pela pronúncia errada.

Ele não fala “Yes”, fala “Ye”, não fala “Boy” ou “Man”, fala “Lad”, que no primeiro caso é o jeito errado de falar, no segundo caso é uma palavra antiga que é utilizada em menor intensidade atualmente. Isso nos leva a referência ao cinema russo, ao cinema verdade, já que o filme se passa em 1800 e de certa forma é um retrato daquela época.

Por isso a câmera ser muito próxima, igual ao cinema russo e principalmente a fotografia remeter diretamente a esse cinema – exemplo, a presença de pássaros remete a “Quando voam as Cegonhas” – e determinadas cenas são claramente inspiradas em documentários como “O Homem com uma câmera”.

O Farol
Imagem: Divulgação

Já que falei em pássaros, a presença das gaivotas no filme tem um papel metafórico interessante e principalmente, um peso cultural na história dos marinheiros que o filme apresenta muito bem e que é importante para o personagem interpretado por Pattinson.

Que não é o que parece ser, da mesma forma que o personagem de Dafoe, porém, Winslow se revela durante o filme, expondo como ele devido a solidão e a ansiedade com a qual claramente não sabe lidar, enlouqueceu e transformou o sentimento que sobrou em dor, como se fosse o próprio Dr.Caligari, que usa a dor para manipular outras pessoas em seu beneficio.

Winslow não manipula pessoas, não porque não quer, mas porque não consegue fazer isso e ele tenta. Em dado momento, ele diz para Wake “cansei dessas lorotas e histórias de Capitão Ahab”, porque além de tentar ser dominante em relação as pessoas, ele procura algo real e sente a obrigação de ser algo, um provedor, talvez devido a seu gênero.

Isso é muito bem mostrado por Pattinson, que aproveita o retrato de masculinidade que Eggers cria em seu roteiro para desenvolver um personagem frustrado em todos os sentidos, principalmente no sentido sexual, como, por exemplo, na cena em que ele e Dafoe ficam tão próximos que o público pensa que eles vão se beijar.

Essa cena é um bom exemplo de tensão criado pelo som, que, como dito, usa muito os barulhos do ambiente para criar angústia, mas que serve para criar todo tipo de tensão, inclusive a sexual, reforçada pela fotografia que mostra o farol (de formato fálico) sempre em formato integral. O que talvez justifique a curiosidade que Winslow tem em relação a luz, talvez ela represente o que ele é e tem medo de assumir. Ou seja, algo desconhecido para ambos os personagens e o som que sai apenas da frente da tela - não é surround, é o estilo de som usado antigamente chamado de mono - faz com que o público fique preso na luz tal qual os dois homens no filme.

E devido a essa escolha, a fotografia não poderia ser outra a não ser o preto e branco, não por ser considerada mais realista (o que não é, pois o mundo tem cor) e sim por expor de maneira visual que os personagens vivem num mundo que eles não conhecem, como se fosse uma caixa de pandora que eles não abriram ainda.

Talvez a luz do farol represente isso, a liberdade e coisas a se viver que os personagens não imaginam e enquanto não descobrem, lidam com sua solidão e ansiedade dentro de uma prisão ou talvez Eggers queira justamente que o significado da luz seja algo particular para cada membro do público, o que é bonito e mantém o mistério para sempre.

Independente do que seja, “O Farol” é um filme que homenageia o cinema clássico, dirigido por alguém que claramente estudou a arte e sabe como realizar essa homenagem na prática. Com grandes atuações e técnica perfeita, o novo filme de Robert Eggers o estabelece como um dos talentos a serem observados no futuro, que não é tão distante assim.

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