11/01/2020 12:00:00 AM

Crítica: Shirley

Shirley
Imagem: DIVULGAÇÃO
Todo escritor precisa de inspiração para escrever, claro que nem todos precisam do mesmo nível de inspiração, mas todos os que seguem essa profissão precisam disso. No caso, talvez o tipo de escritor que mais precisa dela para seu trabalho seja aquele que escreve romances, independente do tipo de romance que é escrito.

No caso de Shirley, personagem que dá título ao filme dirigido e escrito por Josephine Decker, o romance para o qual ela precisa de inspiração é o romance de não ficção. Da mesma forma que Truman Capote precisou de inspiração para escrever “A Sangue Frio”, baseado no brutal assassinato de uma família, Shirley precisa dela para escrever um livro baseado no desaparecimento de uma mulher, que foi aluna da universidade onde seu marido, Stanley (Michael Stuhlbarg), dá aula.

A protagonista, interpretada por Elisabeth Moss, encontra esse sentimento a partir da chegada de um jovem casal, que se hospeda por um tempo na casa dela. Rosie (Odessa Young) e Fred (Logan Lerman), vão até o local porque Fred será assistente de Stanley nas aulas, sendo que, a partir disso, ele pode se tornar professor.

Assim, Shirley usa o casal como objeto inspiracional para o seu romance. Até a chegada deles, ela vivia um momento de total falta de vontade de escrever e até mesmo um certo sentimento de dúvida em relação ao que deveria escrever, porém, ver uma mulher da mesma faixa de idade da desaparecida era o que a protagonista precisava para voltar a trabalhar.

O que o filme trata como um gatilho simples para a personagem principal, é justamente isso, um gatilho, pois era somente disso que Shirley precisava para ser quem é, a mulher arisca, grosseira e capaz de enlouquecer quem está ao seu redor. Pois, se tem algo que ela faz, é usar as pessoas ao seu redor como objeto.

É fácil de observar como ela usa Rosie de diversas formas, desde mecanismo para realizar sua pesquisa (Shirley não sai de sua casa), até como empregada doméstica, da mesma forma que ela usa Fred como ferramenta para usar Rosie, ou seja, ela manipula aquela que deveria ser hospede de forma que ela se torne, lentamente, o que Shirley deseja que ela seja.

Isso é movido não apenas pela inspiração, mas também por um leve sentimento de inveja da jovem, já que a protagonista tem problemas de auto estima, os quais ela demonstra através de comportamentos peculiares que não podem ser descritos aqui, mas é justamente essa inveja que nos leva ao marido da personagem.

Por mais que não pareça logo de cara, Shirley também manipula Stanley e até mais do que isso, ela o controla de maneira ferrenha e até cruel. É só perceber como ela usa o conhecimento literário dele de forma a ele ser uma espécie de revisor e crítico dos livros dela de maneira obrigatória e ela faz isso como uma espécie de chantagem, assim como a loucura que ela demonstra ter, mas não tem.

Dessa forma é possível até abordar levemente as alucinações de Shirley, que mostram como ela fica quando está de fato envolvida com sua escrita (não a toa, Rosie se torna sua protagonista nas alucinações). Essas visões não a tornam apenas mais observadora em relação ao mundo lá fora, mas também a tornam assim em relação ao marido, de forma que ela sabe de fato de tudo da vida dele.

Isso também é gerado por um claro desejo de morte, que de certa forma a inspira de maneiras diferentes em sua escrita, até porque, se a mulher desaparecida tivesse sido encontrada, talvez essa história real tivesse um ponto final definitivo, como não foi, Shirley pode imaginar e deduzir que ela morreu e como ela morreu, se identificando com a personagem que criará.

Claro que isso é algo soturno, porém, de certa forma, Shirley é uma mulher soturna. Elisabeth Moss deixa isso muito claro em sua atuação, seja em seu tom de voz um pouco mais grosso do que em outros trabalhos da atriz, ou pelo seu olhar controlador quase sempre presente.

Assim, “Shirley” se torna um estudo sobre inspiração, principalmente quando se é escritor. É interessante ver como um escritor pode tirar desejo de escrever dos lugares mais surpreendentes, mesmo que seja de histórias reais cruéis, como a de Truman Capote e como a da protagonista deste inteligente filme.

Esse texto faz parte da cobertura da 44 Mostra Internacional de São Paulo

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