8/24/2022 02:38:00 PM

Crítica: Marte Um

Imagem: DIVULGAÇÃO

“Eu sabia que você ia achar besteira”

“Não, é lindo”

Sempre há um momento em que nós, quando crianças, sentimos a realidade bater na porta. É inevitável. Nesse momento, percebemos que nossos pais são apenas pessoas, cheias de qualidades e defeitos assim como nós, mas, caso tenhamos sorte, eles estão ali, os dois, sempre ali.

Digo “os dois” porque nem sempre as famílias são formadas da maneira que dizem que elas devem ser formadas. Muitas vezes, principalmente no Brasil, é apenas a mãe que está ali. Não é o meu caso e nem o caso de Deivinho (Cicero Lucas) e Nina (Camilla Damião), irmãos, ela uma jovem adulta e ele um menino de uns 12 anos, protagonistas de “Marte Um”, dirigido por Gabriel Martins.

Os pais dos dois estão sempre ali, vendo os sonhos dos filhos serem realizados ou não e principalmente, criando expectativas (de forma não maldosa) nos dois, para que eles vivam os que eles, pais, nunca puderam viver na juventude. Eles veem nos filhos, o presente que eles nunca puderam ter quando tinham essa idade.

Por isso, assim como em todo sonho, é necessário abrir mão de algo. São sacrifícios que fazemos para ver o outro feliz. Muitas vezes acabamos nos colocando para trás nisso, o que não é o caso aqui. Pensando que na vida vivemos vários divisores de água todos os dias para que possamos realizar esses sonhos.

Esses divisores de água são rompimentos diários que nós, de maneira quase inconsciente, sempre fazemos. É a mãe que não ensina o filho mais novo lavar a louça, porque para ela, o menino tem que estar brincando, o pai que vai nos alcoólicos anônimos e usa com orgulho seu colarzinho que diz quanto tempo ele está sem beber, a filha que através da namorada busca descobrir como é viver sem depender de ninguém e o filho que não sabe como dizer o que quer, frente a uma expectativa criada em cima dele.

Nenhum desses sonhos é besteira, porque nenhum sonho é besteira, todo sonho é uma motivação, algo que nos leva para frente de alguma forma, nem que seja de maneira extremamente prática. Aqui vemos o cotidiano de uma família negra em busca desses sonhos e a quebra da expectativa constante que a vida faz questão de nos proporcionar.

É muito fácil lembrar de várias coisas, que na hora que acontecem parecem pequenas, mas na verdade não são nem um pouco. Temos a mania de tratar tudo como algo mínimo ou só como uma obrigação e aí mora um perigo de nos esquecermos e de esquecermos o outro.

Erros são cometidos, mas toda aquela família é de pessoas muito boas e todos se sacrificam uns pelos outros. Pequenos gestos ali ganham peso, não porque são grandes, mas porque são pessoais e simples. Como a cena em que Nina fala para o irmão que namora uma menina, “Você acha ruim?”, “Era pra achar?”. Deivinho nem percebeu, mas essa fala é de um carinho tão grande ao mesmo tempo em que é tão simples, que cria força de forma fácil, tanto dentro da obra, quanto em nós, espectadores.

Nós esquecemos desses gestos e com certeza já o fizemos com pessoas da nossa família, que provavelmente se lembram deles. No meu caso, eu me lembro de meses difíceis, onde meu pai me passava segurança de que tudo ia ficar bem, mesmo que nem ele acreditasse nisso. Me lembro de coisas que disse para minha mãe pensando que ela levaria muito a sério ou acharia ruim e assim como Deivinho, ela não achou nada, apenas ficou ali, presente.

Eu só não me lembro dos meus gestos com eles, o que me traz um grande sentimento de culpa. Assim como Deivinho e seu telescópio, para quem faz esse gesto, não é nada demais, é besteira, é o mínimo, é obrigação, não é algo para se sentir orgulho ou alguma sensação parecida com isso, é só mais uma coisa no dia, algo esquecível.

“Marte Um” é um filme que nos faz lembrar durante suas duas horas que nenhum desses gestos pequenos é uma besteira. E é lindo ver alguém fazendo algo que o motiva, mesmo em dias que você não tem muita paciência para ver isso. Mas o filme de Gabriel Martins nos faz lembrar que em nós há a capacidade de fazer esses gestos e de escutar os sonhos dos outros assim como aos nossos e que não importa o que tem que ser feito, “a gente dá um jeito”, como é dito em certo momento.

A gente sempre dá um jeito para as coisas bonitas e simples.

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