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“Eu sabia que você ia achar besteira”
“Não, é lindo”
Sempre há um momento em que nós, quando crianças, sentimos a
realidade bater na porta. É inevitável. Nesse momento, percebemos que nossos
pais são apenas pessoas, cheias de qualidades e defeitos assim como nós, mas,
caso tenhamos sorte, eles estão ali, os dois, sempre ali.
Digo “os dois” porque nem sempre as famílias são formadas da
maneira que dizem que elas devem ser formadas. Muitas vezes, principalmente no
Brasil, é apenas a mãe que está ali. Não é o meu caso e nem o caso de Deivinho (Cicero Lucas) e
Nina (Camilla Damião), irmãos, ela uma jovem adulta e ele um menino de uns 12 anos,
protagonistas de “Marte Um”, dirigido por Gabriel Martins.
Os pais dos dois estão sempre ali, vendo os sonhos dos filhos serem realizados ou não e principalmente, criando expectativas (de forma não maldosa) nos dois, para que eles vivam os que eles, pais, nunca puderam viver na juventude. Eles veem nos filhos, o presente que eles nunca puderam ter quando tinham essa idade.
Por isso, assim como em todo sonho, é necessário abrir mão
de algo. São sacrifícios que fazemos para ver o outro feliz. Muitas vezes
acabamos nos colocando para trás nisso, o que não é o caso aqui. Pensando que
na vida vivemos vários divisores de água todos os dias para que possamos
realizar esses sonhos.
Esses divisores de água são rompimentos diários que nós, de
maneira quase inconsciente, sempre fazemos. É a mãe que não ensina o filho mais
novo lavar a louça, porque para ela, o menino tem que estar brincando, o pai
que vai nos alcoólicos anônimos e usa com orgulho seu colarzinho que diz quanto
tempo ele está sem beber, a filha que através da namorada busca descobrir como
é viver sem depender de ninguém e o filho que não sabe como dizer o que quer, frente a uma expectativa criada em cima dele.
Nenhum desses sonhos é besteira, porque nenhum sonho é
besteira, todo sonho é uma motivação, algo que nos leva para frente de alguma
forma, nem que seja de maneira extremamente prática. Aqui vemos o cotidiano de
uma família negra em busca desses sonhos e a quebra da expectativa constante
que a vida faz questão de nos proporcionar.
É muito fácil lembrar de várias coisas, que na hora que
acontecem parecem pequenas, mas na verdade não são nem um pouco. Temos a mania
de tratar tudo como algo mínimo ou só como uma obrigação e aí mora um perigo de
nos esquecermos e de esquecermos o outro.
Erros são cometidos, mas toda aquela família é de pessoas
muito boas e todos se sacrificam uns pelos outros. Pequenos gestos ali ganham
peso, não porque são grandes, mas porque são pessoais e simples. Como a cena em que Nina
fala para o irmão que namora uma menina, “Você acha ruim?”, “Era pra achar?”.
Deivinho nem percebeu, mas essa fala é de um carinho tão grande ao mesmo tempo em
que é tão simples, que cria força de forma fácil, tanto dentro da obra, quanto
em nós, espectadores.
Nós esquecemos desses gestos e com certeza já o fizemos com
pessoas da nossa família, que provavelmente se lembram deles. No meu caso, eu
me lembro de meses difíceis, onde meu pai me passava segurança de que tudo ia
ficar bem, mesmo que nem ele acreditasse nisso. Me lembro de coisas que disse
para minha mãe pensando que ela levaria muito a sério ou acharia ruim e assim
como Deivinho, ela não achou nada, apenas ficou ali, presente.
Eu só não me lembro dos meus gestos com eles, o que me traz
um grande sentimento de culpa. Assim como Deivinho e seu telescópio, para quem faz
esse gesto, não é nada demais, é besteira, é o mínimo, é obrigação, não é algo
para se sentir orgulho ou alguma sensação parecida com isso, é só mais uma
coisa no dia, algo esquecível.
“Marte Um” é um filme que nos faz lembrar durante suas duas
horas que nenhum desses gestos pequenos é uma besteira. E é lindo ver
alguém fazendo algo que o motiva, mesmo em dias que você não tem muita
paciência para ver isso. Mas o filme de Gabriel Martins nos
faz lembrar que em nós há a capacidade de fazer esses gestos e de escutar os
sonhos dos outros assim como aos nossos e que não importa o que tem que ser
feito, “a gente dá um jeito”, como é dito em certo momento.
A gente sempre dá um jeito para as coisas bonitas e simples.
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