Imagem: Universal Pictures / DIVULGAÇÃO |
“It ain’t Oprah”
Algo que o cinema trouxe para as artes foi a capacidade de
registrar as histórias de maneira visual. Através do filme, temos documentos de
épocas e histórias que são duradouras. Claro, as outras artes também oferecem
isso, mas as vezes livros rasgam, peças de teatro não são sempre filmadas e até
mesmo filmes se perdem, mas o cinema parece ser mais longevo, isso faz parte do
audiovisual.
Em filmes de terror, muitas vezes nós interagimos com a tela
e os personagens, “você vai entrar aí mesmo? Vai morrer”, “burro,
morreu porque foi burro”, os personagens agem assim porque eles acreditam em
algo e nós, espectadores, não apenas acreditamos, como temos certeza do que
vai acontecer. O acreditar vai além do medo, ele alcança a vida em todos os
campos.
“Não, não olhe!” é um filme sobre acreditar ou não no alienígena que está em cima do rancho dos irmãos OJ e Emerald (Daniel Kaluuya e Keke Palmer). Eles acreditam na existência desse alien e buscam provar, através da imagem, o filmando, que ele existe, para expor isso as pessoas. Os dois são criadores de cavalos e os usam para filmagens em Hollywood e descobrem a existência dessa criatura após a fuga dos animais do rancho.
Através dos irmãos, o diretor e roteirista Jordan Peele constrói uma
história muito simples sobre crença. Eles perderam o pai recentemente e
precisam acreditar um no outro pois agora eles apenas têm um ao outro. Se OJ
está bem triste e com dificuldade de seguir a vida, Emerald está seguindo a
vida de maneira expansiva ao extremo, mas também com certa dificuldade de
acreditar nela mesma.
Esse último ponto dá vazão a crença e a prova no alienígena.
Ele serve também para pensarmos em como, muitas vezes nós não acreditamos tanto
em coisas boas, quanto em coisas ruins, que estão presentes em nós. Nós
precisamos ver de fora, com outro ponto de vista, para percebermos que temos
algo bom ou ruim em nós mesmos.
Por isso fazemos terapia e é como se fosse uma entrevista
com a gente mesmo, a pessoa do outro lado (terapeuta) nos ajuda a nos ver e a
acreditar de maneira diferente. OJ e Emerald se unem através da busca pela
prova e passam com isso a acreditar mais nas capacidades deles mesmos como
pessoas.
Talvez devido a esse motivo, Peele escreve muitas falas
falando de Oprah Winfrey, não apenas porque ela é talvez a entrevistadora mais
famosa dos Estados Unidos e é negra, mas sim porque na medida que a
história e o acreditar ou não vai acontecendo, os irmãos fazem uma entrevista
com eles mesmos, descobrindo coisas sobre si próprios que nem eles sabiam, como
OJ com sua coragem e Emerald com a sua determinação e observação detalhista.
Através do acreditar, chegamos ao não olhar. O que sobra
para olhar dentro de nós mesmos se já olhamos tudo? O que será depois desse
alienígena para os irmãos? O cinema trabalha essas duas perguntas. Se muitas
vezes vemos filmes e sentimos que já os vimos por que são iguais aos outros,
outras vezes não sabemos o que será de nós após vermos um filme muito bom.
Esse trato com a imagem e como ela nos afeta é algo com o
qual Peele é muito cuidadoso. Hoje em dia tudo é imagem e dependemos da imagem
para acreditarmos nos fatos, de todos os campos, inclusive em nós. Se o cinema
é a arte da imagem unida com o som, hoje em dia, como tudo é imagem, ele se
torna meio banal, assim como a gente mesmo, tentando provar que existem coisas
que até então não existem.
Peele mostra como é possível criar algo com base na imagem e
que entende a importância da crença nela. Em “Tubarão”, vemos o animal do
título apenas no terceiro ato, em “Não, não olhe” olhamos de fato a criatura
depois da metade do filme. Toda a obra é baseada em crença, se não acreditarmos
que os irmãos estão certos, não acreditamos naquelas imagens expostas pelo
filme.
O diretor nos leva a acreditar, criando uma ambientação
imagética baseada no ver ou não ver. Muitas vezes apenas ouvimos algo que
está acontecendo, com a câmera focada apenas em um personagem (a cena com o
macaco) e precisamos acreditar que este algo está acontecendo, outras vezes, são os
próprios personagens que acreditam e confirmam para o público o que estamos
vendo, como a cena do louva a deus na câmera de segurança instalada pelos
irmãos.
Vivemos em uma época na qual o ato de acreditar é muito
difícil e o tempo todo nós duvidamos de nós mesmos e do que somos, de nossas
atitudes e do que vemos. Ao não olharmos no filme de Peele, fazendo a mesma
coisa que os personagens fazem, estamos paradoxalmente vendo não apenas ao filme, mas
percebendo como somos capazes de nos enxergar de forma diferente e mudarmos a
partir disso.
Vemos essa mudança de ponto de vista nos dois irmãos, mas
também vemos em nós ao usarmos o filme como ferramenta para tal. Somos capazes
de superar perdas, de ter coisas boas novamente e de provarmos que o inacreditável
pode ser visto, mesmo que seja um alien em cima da sua casa.
Todo mundo quer ser visto de alguma forma, ninguém quer
olhar para o outro e não se sentir olhado, o cinema é uma arte voyeurística que
tem como base esse olhar. Acredito que aqui vemos a contradição de uma das essências
do audiovisual que é ver, pois os irmãos precisam não olhar para o alien para
não o atrair (como diz o título) e parte disso envolve acreditar na existência
dele, como já dito acima.
Ao vermos um filme como “Não, não olhe” percebermos como é
importante nos sentirmos vistos e como é importante acreditar, seja na
existência de um alien, ou em nós mesmos. Talvez o filme mais bonito dos até
então três filmes de Jordan Peele, porque mostra que ainda é possível crer em
algo.
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