12/03/2018 12:00:00 AM

Crítica: O Beijo do Asfalto

O Beijo no Asfalto
Imagem: AdoroCinema / DIVULGAÇÃO
Ao saber que veria “O Beijo no Asfalto”, dirigido e escrito por Murilo Benício, decido assistir ao filme de 1981, dirigido e escrito por Bruno Barreto, com Tarcísio Meira, Christiane Torloni e Ney Latorraca, para ver se no filme mais recente, haveria alguma similaridade, fora ambos serem uma adaptação da peça escrita por Nelson Rodrigues.

Como sempre faço anotações sobre os filmes que vejo, decidi reler as do filme de 81 para comparar com as do filme de 2018 e reparo que termino as anotações de ambos os filmes com o mesmo tópico: “O beijo que gera toda a trama principal, nunca é mostrado”.

Penso que isso é algo proposital, tanto da peça, quanto dos filmes que a adaptaram, porque mesmo sem ser mostrado, é essa cena que fica na cabeça do público quando ele sai do teatro, ou, no meu caso, quando saí da sala de projeção. E esse fato, pequeno se pararmos para pensar, é algo que gera toda uma reflexão social, novamente, algo proposital.

Na adaptação de 2018, assim como na de 81, acompanhamos a história de Arandhir, interpretado por Lazaro Ramos. Ao ver, junto com seu sogro Aprígio (Stenio Garcia), um homem ser atropelado por um ônibus no Rio de Janeiro, ele corre para acolhe-lo de alguma forma e atende ao último pedido dele, lhe dá um beijo na boca. Um jornalista chamado Amado Ribeiro (Otávio Müller), faz uma matéria do fato, o que causa uma crise de grandes proporções por uma série de motivos: Ele faz a matéria para ajudar um amigo policial, ele viu o beijo, mas condena Arandhir por isso e cria fatos para vender mais jornais, o que prejudica toda a vida do homem, desde seu casamento com Selma (Débora Falabella), até o seu emprego.

Como é possível reparar, o filme fala de vários pontos sociais interessantes de serem abordados – triste perceber a atualidade deles – como fake news, sensacionalismo midiático e a hipocrisia das pessoas, que as leva a não cuidar de suas próprias vidas e julgar os outros.

Benício cria uma obra metalinguística, ao mesmo tempo em que aborda todas as questões da peça, com uma maestria notável na direção, de uma forma elegante, que raramente vemos em diretores, sejam eles veteranos ou estreantes na área, pois ele usa os pontos fortes da peça e reforça o aspecto teatral que Rodrigues passa.

Ele faz isso através de uma câmera sempre próxima dos personagens e travellings que apostam mais na fluidez da cena do que no dinamismo que um corte seco e a noção campo – contra campo podem trazer, junto a isso, mostrar os bastidores das filmagens, alternando as leituras com o resultado final da obra, mostra como o cinema é uma evolução do teatro, mas como os dois precisam funcionar de maneira independente para serem de fato efetivos.

Ao ver a decisão acima ser executada com tanta maestria, vemos, no resultado final, como isso potencializa o que talvez seja o ponto principal da peça de Rodrigues, mostrar a propensão que as pessoas tem de acreditarem naquilo que elas querem, mesmo que não saibam se de fato aconteceu tal coisa, o que apenas perpetua os nossos próprios preconceitos ou pré-conceitos.

Se esses preconceitos ou pré-conceitos são tratados como furo jornalístico, apenas mostra como a mídia usa essa propensão social para vender mais notícias. Algo que fica muito bem exposto na atuação de Otávio Müller, um jornalista que faz tudo para conseguir algo que possa ser notícia, mas não que necessariamente seja uma notícia.

Por falar em atuação, o elenco do filme é brilhante, Débora Falabella constrói o arco narrativo de Selma de maneira muito concisa, mudando na medida que o filme muda, não sabendo no que acreditar de fato, mas querendo acreditar em algo que não a prejudique. Stenio Garcia entrega uma das grandes atuações de sua carreira, construindo um Aprígio que pode explodir a qualquer momento, seja de amor, ódio ou ciúme, Luíza Tiso faz de Dália uma personagem interessante, não apenas por ser a única que acredita no cunhado, mas pelo motivo e forma que acredita nele.

Mas, o destaque fica para Lazaro Ramos, a escolha de Benício para o papel de Arandhir ser ele é mais uma demonstração da inteligência do diretor, já que o ator dá nova dimensão ao personagem, o que Ney Latorraca no filme de 81 não consegue fazer, por motivos óbvios. Além de um ator altamente talentoso, Ramos – assim como Falabella – muda na medida em que o filme muda, pondo em xeque até mesmo se ele fez ou não o que fez e ao convencer o público que o personagem está em dúvida, o espectador se faz o mesmo questionamento.

A fotografia em preto e branco, do grande Walter Carvalho, é inteligente, pois faz o público fazer a passagem entre cinema e teatro de forma natural, não perdendo o fio da meada entre as leituras, que são cenas muito bonitas visualmente e as cenas gravadas para o filme como produto final. Além disso, também ajuda o fato de o filme ter sido gravado no mesmo lugar onde as leituras ocorreram, então a projeção fica com um ritmo fácil de acompanhar por causa disso.

Nesse aspecto merecem destaque as panorâmicas leves inseridas no filme, o que traz ainda mais ritmo para a obra. A cena mais bonita da projeção se deve a uma delas, quando Falabella está na casa onde é interrogada e com a panorâmica, a vemos no teatro, um raccord (mudança de lugar da cena, através de um ponto focal comum, sendo que este não muda de posição) simples, elegante e orgânico, que se encaixa perfeitamente na projeção.

Assim, “O Beijo no Asfalto” cumpre seu papel, ao levar a peça de Nelson Rodrigues para o cinema, a obra do dramaturgo ganha mais visibilidade, o que é necessário, além de ser um grande filme, é uma grande estreia, de um ator prolifico que agora se revela um talentoso diretor. Um grande filme, nas mãos de um profissional como Murilo Benício, só me faz esperar ansiosamente pela próxima incursão do ator na direção.

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