O que um diretor de cinema com liberdade pode fazer é
notável, na maioria das vezes, as obras primas são criadas quando o realizador
consegue executar todo o seu plano sem nenhum tipo de impedimento, mas, claro,
é necessário ter talento para um filme se tornar inesquecível.
1972, Ingmar Bergman, já bem-sucedido e premiado, lança
“Gritos e Sussurros”, um filme que conta a história de Agnes (Harriet
Andersson), uma mulher com câncer, que está de cama na propriedade rural da
família. Lá, ela está sob os cuidados de suas irmãs Maria (Liv Ullmann) e Karin
(Ingrid Thulin) e da empregada Anna (Kari Sylwan), todas tem uma relação
diferente com a mulher em questão.
O diretor e seu diretor de fotografia, Sven Nykvist, um
parceiro recorrente na filmografia de Bergman, usam as cores saturadas para
ambientar o local onde a história acontece, mas, a cor principal e mais
importante para compreendermos o filme de outra forma é o vermelho, que é o tom
que mais aparece durante as 1h30 de projeção.
O vermelho estabelece a relação entre sentimentos distintos
de cada uma das personagens, que vão de forma gradual convergindo até se
encontrarem num ponto comum para todas elas. Essas mulheres são completamente
diferentes, essa cor ajuda a entendermos melhor cada uma delas e é uma ferramenta
que Bergman e Nykvist usam para criar subtramas – pequenas, mas relevantes –
dentro da trama principal.
Anna, a empregada da família, não ajuda e cuida de Agnes por
obrigação, como seria o esperado, mas sim por amor. Amor que sente desde pequena
pela mulher e que, na medida do possível, foi retribuído por Agnes. O vermelho
representa o amor que elas sentem uma pela outra e a luxuria que não são
capazes de satisfazer devido a doença de Agnes. Além da ligação sanguínea que
Anna é levada a acreditar que tem com as três irmãs.
No caso de Agnes, o vermelho serve para potencializar a dor
que ela sente de forma constante, além do desejo por Anna explicado acima, ela
tem um desejo pela morte, já que não aguenta mais sofrer e nem ser um peso na
vida de três mulheres que ama de forma diferente. Ela transforma a dor em amor
e esse amor em desejo pela morte e pelo alivio da dor.
Maria, a irmã mais nova, tem o vermelho mais ligado ao
aspecto luxurioso, já que o desejo dela por outro homem que não seja o marido
está claro para todos, até mesmo para o marido. Por ser a mais emotiva das
mulheres – Anna se segura o máximo que pode, Karin não expressa nada – ela é
quem mais demonstra empatia pela dor que a Agnes sente, o que, para as outras
duas mulheres, é algo infantil, porém, Maria demonstra segurança e maturidade,
já que dentro de seu desejo, também está a aceitação que a morte é o melhor
para sua irmã parar de sofrer.
Karin – como dito brevemente no parágrafo acima – não
expressa nada, nenhum tipo de sentimento, a não ser em relação a sua vida
pessoal. O vermelho da personagem é referente ao sangue e no que diz respeito a
querer sentir algo, nem que seja a dor, inclusive sendo capaz de atos extremos
para tal – como a bela cena do caco de vidro – ela parece cuidar de Agnes por
obrigação e não por amor, já que nunca demonstra nada do tipo, mas temos que
levar em consideração a dificuldade dela em expressar sentimentos.
As quatro atuações do filme se completam, justamente por
essa convergência de sentimentos, todas as personagens tem um pouco uma da
outra, tanto pelo lado bom, quanto pelo ruim. O vermelho não serve apenas para
Bergman expor a luxuria, desejo, amor, dor, mas para unir essas mulheres e para
elas lidarem com o que são e com o que sentem de forma orgânica, como se todas,
pelo menos por um momento sejam uma só, como parecem ser na cena do sonho.
O desenho de luz, sempre mantendo as atrizes na sombra,
mostra o estado psicológico delas, sempre escondidas dentro de si mesmas e de
sua própria culpa, esta não é causada apenas pelo estado de Agnes. A culpa que
elas sentem é exposta pelo vermelho, não apenas pelo das paredes e mobília, mas
pela ausência dele nos figurinos, como se elas não quisessem assumir essa
culpa.
Culpa que sentem de forma diferente e que são externalizadas
apenas no terceiro ato, como se cada uma a sua maneira fechasse um ciclo, tanto
os próprios, quanto aqueles que envolvem as outras mulheres do filme. Fechando
os ciclos individuais elas podem seguir suas vidas, estando juntas ou não.
Karin sente culpa porque não ama a irmã e sabe disso, mas
não faz nenhum tipo de esforço para mudar, Anna sente culpa porque é apaixonada
por Agnes e sabe que nada que ela fizer será capaz de salvá-la e por fim, Maria
tem saudade da relação que tinha com as irmãs e com Anna, por isso, ela tenta
abstrair a doença da irmã lembrando de momentos da infância delas.
Logo, o vermelho serve como resumo da obra, porque expõe
todos esses sentimentos junto com a performance das atrizes, que aproveitam bem
o uso da cor, para construir suas personagens e também montar um relato
autobiográfico de Ingmar Bergman.
Uma criança que teve muitos problemas de saúde e criado por
pais rígidos, Agnes pode ser uma representação audiovisual dos problemas que
Bergman teve quando pequeno, Karin, o mesmo nome de sua mãe, representa a
personalidade desta, de acordo com o que ele mesmo descreve em sua
autobiografia, Maria é a irmã mais nova que ele amava e Anna pode ser uma
síntese, em forma de uma pessoa / personagem, que representava um alivio para
Bergman, pode ser o cinema, o teatro, o envolvimento irresponsável com mulheres
ou qualquer coisa que ele usasse como válvula de escape.
“Gritos e Sussurros” está longe de ser apenas um filme de
Bergman, ele pode não ser o melhor, mas está na briga para tal posto, porém,
convenhamos que isso não importa. O que realmente vale a pena é o tanto de
coisas que podemos descobrir em um filme que nunca será esquecido na história
do cinema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário