4/29/2019 12:00:00 AM

Crítica: A Sombra do Pai

A Sombra do Pai
Imagem: PANDORA FILMES / Divulgação

A Sombra do Pai”, novo filme da diretora Gabriela Amaral Almeida, é um bom exemplo de como o terror, como gênero, serve como metáfora para falar conscientemente ou não de um momento seja atual ou não, da sociedade em que vivemos. Não há cinema ou qualquer forma de arte que não fale das pessoas e de tudo que as cerca.

Digo “conscientemente” pois o roteiro do filme é tão bem escrito (pela própria diretora), que as metáforas que ela trabalha durante aproximadamente 1h30 de duração se tornam orgânicas, intrínsecas a trama principal, que é a de Dalva (Nina Medeiros), uma menina de 9 anos que mora com o pai Jorge (Júlio Machado, de “Joaquim”) e ao ver a tia Cristina (Luciana Paes) ir embora para morar com o marido, precisa assumir responsabilidades de uma mulher adulta, como lavar roupas, cozinhar e cuidar da casa.



Porém, Dalva não é uma menina qualquer, ela tem poderes mediúnicos, os quais ela, apenas por querer que algo aconteça, ela faz isso acontecer, através de sua capacidade. Assim, ao se ver sozinha praticamente todo o tempo, ela passa a usar isso e a religião como refúgio, unindo, de certa forma, aos filmes de terror que ela gosta e assiste.

Vivemos em uma sociedade patriarcal e punitiva no que diz respeito as mulheres e desde cedo isso começa. A principal metáfora do filme é o retrato social da criação das meninas na nossa sociedade, quase nunca elas são criadas pelas suas figuras paternas para serem mulheres independentes e fortes, elas são preparadas para ficar a sombra de alguém, geralmente um homem, seja ele o pai, como o caso atual de Dalva, ou o irmão mais velho, isso no quesito familiar, pois no trabalhista, tem os chefes e diretores que são homens.

Assim, por ter ciência, desde cedo, que está sendo criada para ficar a sombra do pai, Dalva busca sua independência a partir da religião e dos filmes que gosta de assistir, mesmo que em ambos os casos ela seja proibida de fazer essas coisas, ela sabe que caso ela não faça, ela ficará sempre na sombra de alguém.

Essa sombra é indicada pela fotografia, que usa pouca luz e quase todas as cenas do filme são escuras, como se a menina estivesse o tempo todo cercada de sombras e que quando ela se livrasse de uma, logo aparecem duas para substitui-la. O tom escuro é reforçado pelo preto, cinza e branco dos figurinos de todo o elenco e destacado nos close ups recorrentes da obra, ambos esses aspectos ajudam nos momentos em que o filme fala sobre depressão, isso no arco de Jorge - Júlio Machado que cria uma figura totalmente desprovida de afeto pela filha, ao mesmo tempo em que sente saudade da mulher e precisa lidar com a iminência de uma crise depressiva.

A fotografia ajuda a reforçar esse retrato social, tratando de vários assuntos, que Amaral Almeida cria metaforicamente, além de enriquecer o roteiro que não dá nada de graça para o público, fazendo o espectador pensar o tempo inteiro em como as palavras ditas por Dalva são importantes para a relação quase inexistente dela com o pai.

Pois, se tem algo que faz diferença na vida, é o peso do dito e do não dito, o que, inevitavelmente, gera a saudade. Saudade que Dalva tem da mãe, o que fica muito bem encaixado na atuação de Nina Medeiros, que vem de um ótimo trabalho em “As Boas Maneiras” e que surpreende positivamente, conseguindo carregar o filme nas costas com tranquilidade.

Vemos ela lidando com as autodescobertas, a necessidade de ser mais do que a sombra de alguém e principalmente a capacidade, que ela sabe que tem, de ser muito mais do que o Outro (um termo frequentemente usado por Simone de Beauvoir ao falar da independência feminina em “O Segundo Sexo”.).

Porém, não são apenas pai e filha que estão bem em seus papeis, Luciana Paes cria a tia como o mais próximo que Dalva tem de uma figura materna, por mais que ela dê algumas broncas e proíba certas coisas (como os filmes de terror), ainda assim ela é boa para Dalva e Rafael Raposo, como Elton, marido de Cristina, é um alívio cômico bem encaixado.

A Sombra do Pai
Imagem: PANDORA FILMES / Divulgação


Unindo elenco, fotografia e roteiro, é notável como Amaral Almeida cria um filme que não é sobre terror, mas é sobre ele poder acontecer a qualquer hora em qualquer situação. Pensando nisso, o fato de nunca vermos em nenhum momento, Dalva usando os poderes e apenas vermos o resultado deles, faz o público precisar acreditar que a menina é realmente poderosa.

O que vai contra a regra não escrita do audiovisual, que é a de sempre mostrar tudo o que for possível. Porém, é muito mais interessante você precisar acreditar em algo do que você ter certeza que aquilo é concreto, porque nos descobrimos como pessoas independentes e permanentes no meio do caminho, justamente o que Dalva está fazendo.

Portanto, Gabriela Amaral Almeida é tão boa diretora e roteirista que ela não precisa mostrar algo para que nós acreditemos nesse algo, o simples fato de deixar implícito é o suficiente para nos deixar tensos e presos numa cadeira por uma hora e meia, sem nem sequer pensarmos no mundo lá fora.

É esse talento, exposto em um filme que é o total oposto de seu primeiro longa, que faz dela uma das melhores diretoras atuantes nos últimos anos e não só no Brasil.

Confere também a entrevista com a diretora

Veja o trailer, filme distribuído pela Pandora Filmes:

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